Algumas palavras...

"Tal como o orvalho que surge e desaparece,
assim foi a minha vida
Mesmo o esplendor da fortaleza de Osaka
É um sonho dentro de um sonho."


Toyotomi Hideyoshi; um dos três líderes da unificação do Japão

3 de agosto de 2011

Preguiça de Pensar: A catarse da intelectualidade brasileira

Durante as minhas férias universitárias, procurei ler e estudar o tema da intelectualidade brasileira e seu declínio, um assunto realmente vasto. Este “empreendimento” se tornou maior do que esperava, então optei por dividi-lo em textos menores, porém não sabia como introduzi-lo adequadamente neste blog. Foi quando na última quinta-feira, 28 de Julho, li, por acaso, no Caderno2 do Estado, um texto que será um belo exemplo da situação que posteriormente irei tratar.
“A Política da Preguiça” era o ostentado título do artigo. Trata-se de uma reportagem sobre o Elogio à Preguiça, um pretenso seminário montado por “filósofos” brasileiros para debater o tema.
Apesar de ser apenas uma reportagem, o conteúdo é exposto pelas palavras citadas do próprio organizador do seminário, o ‘filósofo Adauto Novaes’ (era como o Estado o chamava). A abordagem vai desde a Grécia Antiga, passando pelo capitalismo, à América.
Eis a introdução:
“Se o nosso Macunaíma murmurou “ai, que preguiça...” ao nascer, o filósofo Albert Camus comentou que “são os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo”. Outras milhares de citações seriam possíveis porque a indolência freqüentou a imaginação humana desde tempos imemoriais – e nem sempre com a conotação negativa que hoje a acompanha.”
Não é verdade. É freqüente a associação de preguiça e ócio como sinônimo, mas qualquer um que estude a língua portuguesa lhe dirá que não existe sinônimo perfeito. Entre estes dois termos, no entanto, não chegam nem a serem “imperfeitos”; se examinarmos a etimologia e a idéia transmitida, verificar-se-ão que são duas coisas completamente diferentes.
Ócio é proveniente do latim “otium” que significa “descanso, retiro, tempo livre para fazer algo que não o trabalho”. Enquanto a preguiça procede de “pigritia”, vindo, por sua vez, de “piger”: lento, vagaroso, inércia; notamos o termo na expressão “pigra palus” que significa “lagoa de águas paradas”. Constatamos, evidentemente, por via etimológica, a distinção clara de significados entre ócio e preguiça; além disso, o sentido destes termos, apesar de variar conforme ambiente, não pressupõe alguma conotação positiva. Essa aproximação do significado foi um acidente, ou melhor, uma confusão de conceitos que deve ser dissociados.
“Não devemos falar em crise da contemporaneidade, mas em mutação” – diz o filósofo (?).
Realmente a classe intelectual brasileira não aprende! Até pouco tempo ignorava completamente o assunto; agora, ou busca eufemismos baratos, ou joga a culpa no bicho-papão do velho capitalismo.
 O que houve foi uma apropriação brutal do tempo dos indivíduos pelo capitalismo contemporâneo.”
E o senhor Oricchio, jornalista e autor do artigo, completa: “[...] esse novo ethos capitalista se opõe frontalmente às experiências do pensamento e da reflexão”.
Nada como a repetição de um bom discurso-clichê!
“[...] as estratégias para administração do tempo alheio são uma forma de dominação.”
Não, não é o capitalismo o grande vilão da novela. É tão ridículo e infantil como culpar o “cachorro que comeu a lição de casa”. É um ser incapaz de contra-argumentar: nada mais a calhar. Difícil e doloroso é o reconhecimento do próprio erro. Admitir que eles mesmos sejam a causa de toda essa crise. Sim, crise! Nada de “mutação”. O tema será amplamente tratado nos próximos post, portanto, num primeiro momento, vou sintetizar da seguinte forma:
Qual o país que é símbolo do capitalismo? Alguém discorda que seja a United States of America? Qual o país com maior PIB do mundo? United States of America. Qual país que tem em seu território 17 das 20 melhores universidades do mundo? United States of America. (detalhe: pesquisa realizada pela universidade de Xangai).
Países como EUA possuem uma alta cultura em plena produtividade, têm trabalhos científicos e publicações reconhecidas por todo o mundo e os melhores padrões de ensino. Em países desenvolvidos, uma pessoa comum (ou seja, que possui um emprego capitalista) lê, em média, 10 livros por ano. O ócio (como atividade pessoal alternativa ao trabalho) é sim bem visto, pois são nestas circunstâncias que se formam os intelectuais que o mercado precisa e valoriza. E, além disso, sendo subsidiados pelo governo ou iniciativa privada, os doutores e intelectuais são cobrados constantemente para dêem resultados satisfatórios à sociedade. Nada mais justo.
Pergunto-lhes: sairá algum retorno benéfico à sociedade, ou até mesmo para eles, este Elogio à Preguiça? A única satisfação que terão é a “consciência tranqüila” de que o culpado de tudo é o capitalismo fantasioso. Discutem-se mais sobre ilusões confortantes do que medidas de reversão desse estado lamentável.
Há outra passagem do texto que traz o seguinte argumento:
“[...] uma das formas eficazes de controle seria estigmatizar a palavra. O preguiçoso torna-se um pária. Mas, lembra Novaes, essa noção é historicamente construída. “Na Grécia e Roma antigas, o ócio era nobre e o trabalho, vil.” Transformar a ociosidade em pecado, ou estigma social, é uma forma de culpar os que ousam dispor do seu tempo livre. Não passa de uma estratégia de dominação.”
Pressuposições totalmente distorcidas. A palavra sofre sim pressão social em cada época ou situação, fazendo com que ela adquira significação de acordo. Além disso, todas as noções, de qualquer coisa, passam por uma construção histórica, pois a própria transição situacional e os valores da sociedade moldam os sentidos que uma determinada expressão é tomada. Porém, isso não quer dizer que a “preguiça”, como signo, tivesse um sentido “inspirador” na Grécia (lembrando que utilizam erroneamente os termos como sinônimos). Não há qualquer indício de que a ela seja um princípio cultuado nessa época, mas existe sim certo “status” na ociosidade, que implicitamente significa atividade criativa.  Como mencionei, há uma confusão de significados.
 Isso, ironicamente, é a indolência intelectual, que resulta na falta de capacidade em raciocinar por mais de uma via provável; ou formular idéias e hipóteses diferentes, além daquelas já pré-formadas sobre o assunto. Em suma, compram a teoria que está em evidência e se valem dela sem ponderar e confrontar os argumentos contidos. Preguiça de pensar: a catarse da intelectualidade brasileira.
Os fatos
Primeiro: o ócio tinha seu valor nos tempos helênicos, sim. Mas desde que fosse preenchido por atividades relevantes ao bem-comum da polis. É salutar o esclarecimento de que o ócio era um direito apenas dos cidadãos atenienses, ou seja, um grupo social seleto que precisaria atender a certos requisitos: se o indivíduo não tivesse laços sanguíneos direto com alguém que detém a cidadania (um pai, por exemplo), a outra forma de se adquirir ela era através de recompensa por serviços prestados ao Estado. Portanto, a cidadania (e com ela o ócio) era uma concessão dada àqueles que de certa forma trabalharam adequadamente e que, por direito, mereciam o “descanso” – esse sim valorizado. Na verdade, esse “descanso” entendido como ociosidade não quer dizer inércia. O cidadão recompensado desenvolvia atividades igualmente necessárias: os trabalhos políticos, por exemplo. Não o isentando de um possível trabalho manual se assim for necessário.
Segundo: o trabalho não era “vil” para os gregos. A forma como o senhor Novaes coloca subtende-se que nenhum trabalho era louvado – o que é falso. Esse arremedo de pseudo-filósofo afirma uma generalização quando, na realidade, o fato em questão se realiza num universo particular: os únicos trabalhos depreciados eram exercidos por escravos. Ou seja, tarefas consideradas de baixo-escalão para serem executados por cidadãos comuns. Mas estes não eram poupados de outras tarefas profissionais: os cidadãos gregos eram comerciantes, agricultores, marinheiros e artesãos – atividades que não poderiam ser executadas por escravos.
Depois destas evidências, é claramente percebido que o ócio era uma finalidade a qual o trabalho era seu meio de acesso.
Há mais um fato importante. Além dos cidadãos e escravos, havia um terceiro grupo social presente na polis: os metecos (estrangeiros com permissão de residir em Atenas). Eles eram devidamente registrados nos demos e incorporados na administração pública: trabalham como cobradores, médicos, empreiteiros de obras, arautos, etc.
O que isso significa? A presença desses grupo social, impossibilitado de praticar o trabalho, torná-los-ia “pesos” desnecessários, uma vez que seus perfis não se encaixam nem como escravos (para serviços baixos) e nem como cidadãos (com trabalhos de nível condizente e suas regalias); isto é, eles não teriam nenhuma funcionalidade na organização democrática: seriam literalmente “preguiçosos”. No final das contas, acabaria sendo um estorvo que afetaria o equilíbrio da ordem social e certamente haveriam conflitos - pois ninguém aceitaria trabalhar enquanto estrangeiros descansam e usufruem disso, alguém aceitaria? A saída foi atribuir-lhes atividades que auxiliassem na manutenção e bem-estar em troca da permanência deles no meio.
Observações expostas, concluímos que a preguiça nunca poderia ser “elogiada” e que o “ócio” era uma resultado do labor. Essa concepção de ociosidade merecida pelo esforço do trabalho é compreendida até hoje. Assim diz Monteiro Lobato:

"Como cansa, estafa, uma vida desocupada, vazia duma grande tarefa construtora, duma batalha a ganhar cujos detalhes nos encham de bom cansaço suarento e corado, criador dos sonos de pedra e de esperança aos montes!" (A Barca de Gleyre, 1ª Ed., pg. 61)

Só uma observação: mesmo que o intuito desse Elogio fosse o ócio em si (distinto de preguiça), só o fato de associar, proposital ou acidentalmente, as duas idéias como sinônimos equivalentes - ou quase-equivalentes - já denuncia a precariedade da discussão, visto que os elementos são "filósofos".

Já um dos seminaristas do “Elogio”, o francês Jean-Pierre Dupuy, aborda o seguinte tema:
“[...] falando sobre O Tempo Que nos Resta, lembra que Tocqueville, em seu clássico A Democracia na América (1840), já havia detectado, nos EUA, um “ardor febril” na busca de bens materiais. Essa procura incessante, essa inquietação, tormento da alma, signos do capitalismo, mostrava sua face no século 19.”
 Essa mentalidade anti-ianque dos brasileiros (e franceses) é deprimente. Os Estados Unidos, desde os tempos coloniais, desenvolveram um senso próprio de dever com seus sucessores: a idéia de legar aos seus filhos alguma coisa para que eles possam viver em melhores condições de vida e manter o nome da família. Não era exatamente “ardor febril” ou “tormento da alma”, mas sim a concepção de responsabilidade com seus consangüíneos. Para isso, hierarquizam-se os valores e escolhas de acordo com que entendiam ser mais apropriado no momento.
Finalizando este “prólogo”, há uma citação, muito cara, de John Adams (o senhor ao lado que figura meu blog), o segundo presidente dos EUA, que faz um desenho sintético dessa hierarquização de prioridades. E, genericamente, exprime-se neste trecho o pensamento vigente do conhecido estilo “american way of life”:
“Eu poderia encher volumes com descrições de templos e palácios, pinturas, esculturas, tapeçaria e porcelanas – se me sobrasse tempo. Mas não poderia fazer isso sem negligenciar os meus deveres... Devo estudar política e guerra para que meus filhos possam ter a liberdade de estudar matemática e filosofia, geografia, história natural, arquitetura naval, navegação, comércio e agricultura, a fim de que dêem a seus filhos o direito de estudarem pintura, poesia, música, arquitetura, estatuária, tapeçaria e porcelana.”